domingo, 1 de novembro de 2009

Nosso amigo húngaro







Com seus quinze centímetros de altura, ele estava perfilado, sujo e empoeirado, junto a outros companheiros de infortúnio, numa estante posta praticamente na calçada, extravasando os limites daquele sebo na Avenida São João, em São Paulo.

Já respirou tantos outros ares, mas inalava, ali no Centro da cidade, a fumaça dos automóveis, e, fugazmente, o perfume de uma menina discretamente deselegante que o fazia suspirar, por que não?

Tanto viajou, está hoje farto de tantos transportes, portos, mas com o ponto de ônibus disponível tão próximo, com tantas opções de destinos, não desejaria entrar naquele "Lapa 817C", ou no "Barra Funda 9250", pelas mãos de quem talvez nunca poderia entendê-lo, mas apenas amá-lo?

Carrega em húngaro os poemas de "A Canção de Hiawatha" de Henry Wadsworth Longfellow. Suas folhas finas foram impressas com esmero. Seu tamanho contrasta com a robustez que transmite: a encadernação resistiu a esses anos todos, as páginas pouco se tingiram de tempo, apenas o tom ocre e os detalhes em dourado estão esmaecidos. Na capa, como a atestar sua força, a figura de um guerreiro empunhando seu arco.

De certo, sabemos apenas que nasceu em Budapeste, em 1956. Com quem conversou e conviveu por toda a vida, os lugares que conheceu, o que inspirou durante sua vida, tudo isso ignoramos, e por mais que percorramos suas páginas em húngaro, jamais saberemos. Difícil saber o que seria mais fantástico: descobrir quem o folheou pela última vez, ou quem anotou a lápis, na última página, 210, caracteres que hoje chegam a soar enigmáticos.

(É um sarcasmo do destino que a única inscrição compreensível sejam três algarismos arábicos que usamos para precisar valores, quando na verdade qualquer sequência de caracteres não seria capaz de representar o que representamos um para o outro.)

Hoje ele está conosco, resgatado daquele limbo infame, e salvo sabe-se lá de que tristes destinos. Até agora pouco pudemos dizer um ao outro. Ele já sabe que esta será sua última morada. Que muito provavelmente jamais poderemos usufruir de tudo o que ele é. Que encontraremos (por Deus, encontraremos!) o "Hiawatha" em português, ou em espanhol, ou inglês, para ao menos saber o que ele tem a nos dizer, ainda que não seja por sua própria voz.

Pensamos em oferecê-lo, doá-lo mesmo, a alguém que pudesse entendê-lo melhor, mas ele mesmo nos pediu, não em húngaro ou em português, mas numa língua repleta de silêncios, para continuar aqui. Não sabemos suas razões, o que não diminui nossa alegria, como é próprio do amor e da amizade: desinteresse e mistério. Há quem diga haver outros motivos. Que, apurando-se os sentidos (todos), podem-se ouvir com frequência alguns murmúrios vindos daquela região da estante: em geral, trechos trocados por ele com outros Henry, James e Miller, e com o "Moby Dick" de Melville; impropérios contra a ignorância e as encadernações descuidadas; reminiscências, ainda que os demais sejam tão mais jovens; e palavras, sempre muitas palavras.

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