quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Aqueles livros que não esquecemos (ou que reavivam nossas lembranças quando os reencontramos)




Tenho muitas histórias de objetos que gostaria de retirar do passado e trazer de novo à vida. Sim, trazer de novo à vida, porque afinal tudo o que existe é o presente, é presente.
Por exemplo, o apito que meu pai, condutor de bonde em Santos, usava no trabalho, e que guardou consigo depois de deixar o serviço no transporte público. Nunca soube se ele mantinha alguma relação sentimental com aquele pequeno tubo de metal. De minha parte, moleque de dez anos, me limitava a soprá-lo com prazer. Tirava um som metálico e agudo do apito, que circulou pela casa durante anos, geralmente guardado numa gaveta com objetos tão díspares como tesouras, chaves sem portas, moedas sem produtos, caixa de remédio já sem a doença...
Nunca soube quando o apito sumiu, definitivamente, no passado. Já inquiri outros personagens daquele presente, e ninguém soube dizer para onde pode ter ido o som do apito de meu pai. O ex-condutor de bonde sabemos onde está hoje: no passado, em silêncio.
Juntam-se ao apito o rádio à válvula de meu avô, que agora me faz lembrar de como os objetos eram mais vivos naquele presente. O rádio, uma vez ligado, parecia despertar do sono, enquanto pouco a pouco ia se iluminando.
E a máquina de costura movida a pedal (a amor?) de minha mãe. Mais o moedor de carne manual (adivinhe movido a quê) de minha avó.
Todos na mesma gaveta, com livros de minha infância, como o “Ilha do Tesouro” de Stevenson, presenteado, com uma dedicatória escrita com sua letra elegante e miúda, pela maravilhosa professora Marlene. Já não me lembro da capa do livro, nem do texto da dedicatória. Apenas Marlene, inteira, está viva na minha lembrança.

A professora Marlene foi minha primeira namorada, como não escreveu Bandeira, que não escreveu “Tonzeca, o calhambeque”, de Camila Cerqueira Cesar, que me reencontrou este ano enquanto eu garimpava os livros de um bazar assistencial. E incrivelmente foi como me lembrar do que eu nunca havia esquecido: a capa, os desenhos  de Maria Heloísa Penteado e o texto de Camila, que hoje é nome de biblioteca no bairro do Butantã, em São Paulo, biblioteca em cujo ato de inauguração felizmente não estava presente a homenageada, já em silêncio, como meu pai e seu apito.


Bandeira também não escreveu o livro de História de minha 5ª. Série, repleto de preconceitos, incorreções e, no mais, fruto do Brasil dos anos 70. Com certeza eu o teria perdoado, porque amo Bandeira, e o livro também, que comprei de imediato, como teria arrematado em leilão o apito, o rádio mágico, o moedor, a máquina de costura e tudo aquilo que hoje é movido apenas a lembrança.




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